OPERÁRIOS DAS SECAS: RETIRANTES E TRABALHADORES DE OFÍCIO EM OBRAS DE SOCORRO PÚBLICO (CEARÁ - 1877-1919)

 

Tyrone Apollo Pontes Cândido


Resumo: Este artigo pretende identificar experiências de trabalho de retirantes e trabalhadores de ofício no contexto das grandes obras de socorro público no Ceará durante as secas da passagem do século XIX. Discute principalmente as relações estabelecidas no cotidiano de trabalho entre sertanejos e trabalhadores qualificados, observando suas diferenças e as trocas de experiências na luta operária.

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A partir da seca de 1877, uma nova relação com a falta de chuvas se estabelece no seio das populações do semi-árido. Desde então, os anos de estiagem – que de tempos em tempos ameaçam a economia sertaneja e a segurança alimentar dos pobres – são aqueles em que milhares de pessoas provenientes do campo procuram as cidades em busca de socorro. Seca passa então a ser sinônimo de multidões de retirantes que, premidos pela fome, percorrem as estradas na esperança de adquirir meios para uma dura sobrevivência. As secas, no entanto, não apenas evidenciam os extremos da miséria; são também momentos em que os sertanejos, distanciados de seus modos de vida originários, vivenciam novas experiências. 

Dentre as novas experiências, em particular significativas durante as secas em anos da passagem do século XIX ao XX – 1877-79, 1888-89, 1900, 1915 e 1919 –, encontra-se o recrutamento dos retirantes como operários de construção em grandes obras de socorro público. Na intenção de afastar as multidões de flagelados dos “vícios da ociosidade”, foi imposta àqueles considerados aptos a condição de trabalhar em serviços urbanos ou, preferencialmente, em grandes obras de construção, como em prolongamentos de estradas de ferro e em construções de açudes, para que com isso tivessem acesso ao socorro do governo. Ferrovias como as estradas de ferro de Sobral e de Baturité foram construídas em quase todas suas extensões pelas mãos de retirantes. Da mesma forma, grandes açudes como o do Cedro, em Quixadá, valeram-se de sertanejos em tempos de secas para sua construção. 

As elites viam nas obras de socorro público um meio privilegiado de auxílio aos retirantes porque os converteriam “de mendigos em trabalhadores”. Mas o engajamento nas obras estava longe de ser espontâneo. O trabalho intenso e o disciplinamento, a direção de engenheiros autoritários – muitas vezes estrangeiros –, a falta constante de água e comida, a moradia compartilhada em abarracamentos improvisados, as doenças, tudo isso fazia os retirantes evitarem estas obras sempre que podiam. Do seu estranhamento em relação aos códigos de trabalho surgia um cotidiano marcado por conflitos. 

Vaqueiros, lavradores ou trabalhadores de diferentes atividades rurais durante as secas eram ocupados naquelas atividades menos qualificadas das obras, tarefas que não exigiam muito mais do que determinados procedimentos manuais, como abertura de picadas, movimentação de terra ou carregamento de pedras. No entanto, as grandes obras, além de necessitar da confluência de uma massa numerosa desses trabalhadores, empregavam tecnologia e procedimentos que demandavam a presença de trabalhadores de ofícios que para ali se dirigiam desde pontos distantes do Brasil, ou mesmo de outros países. Assim, ao lado dos sertanejos, muitas vezes à frente das turmas de trabalhadores, estavam artífices que executavam os assim chamados “serviços especiais”: canteiros, cavouqueiros, mecânicos, marceneiros, ferreiros, carpinteiros e pedreiros. 

Este artigo procura analisar a relação estabelecida entre essas categorias de trabalhadores que, nas obras de socorro público durante a passagem do século XIX, travaram um improvável contato. Por serem trabalhadores qualificados, detentores de conhecimentos com os quais podiam barganhar vantagens, os artífices diferenciavam-se dos retirantes, operários subalternos dos grandes empreendimentos, que trabalhavam às vezes em troca apenas do prato de comida que lhes assegurava uma precária sobrevivência. 

Não apenas a qualificação para o trabalho distanciava aqueles operários. Também eram divergentes suas trajetórias de vida e o sentido que atribuíam à sua presença nas obras públicas. Os retirantes muitas vezes não viam nas obras mais do que um meio de se manter durante os meses em que perdurasse a seca. Já os trabalhadores de ofício estavam ali por pertencerem a uma classe de trabalhadores exclusiva, não encontrável facilmente no Ceará. Para entender as peculiares posições que retirantes e trabalhadores de ofício ocupavam nas obras, procurarei observar a formação de grupos de solidariedade, forjados no cotidiano de trabalho de acordo com afinidades familiares, comunitárias ou corporativas, mas que expunham as diferentes perspectivas dos grupos operários ao se posicionarem diante dos desafios que as obras apresentavam.


CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Operários das secas. Revista Mundos do Trabalho, v. 3, n. 6, p. 176-193, 2011.



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