TRADIÇÃO DISCURSIVA E HISTORICIDADE DA LÍNGUA E DO TEXTO

Apresentação

Nos últimos anos, temos verificado uma virada nos estudos que envolvem a historicidade da língua e do texto no âmbito das pesquisas linguísticas, as quais, acreditamos, têm trazido implicações significativas não só para a Linguística, como para áreas afins. Essa virada, que busca integrar sincronia e diacronia, tem como pedra fundamental a Linguística Integral proposta por Eugênio Coseriu (1981[1]). De acordo com Kabatek (2015, p. 12[2]), “a linguística integral não é uma limitação, é o convite para descobrir o mundo dos fenômenos com toda sua riqueza: todas as dimensões possíveis da linguagem humana, das línguas e dos textos”. Em meados do século XX ainda em Montevideo, o linguista romeno, ao tratar da linguagem humana, a concebeu em três níveis: o primeiro nível, o universal, está relacionado ao falar como uma atividade humana em geral; o segundo nível, o histórico, diz respeito à língua como uma prática histórica que envolve a estrutura gramatical, o léxico e o seu funcionamento; o terceiro nível, o individual, refere-se ao texto (ou discurso) como uma forma concreta e única, um ato linguístico (COSERIU, 1980a[3]).

Dando continuidade ao pensamento coseriano, Peter Koch (1997[4]) propôs uma duplicação do nível histórico, dividindo-o entre as línguas históricas e as tradições discursivas. O conceito de Tradição Discursiva (TD) vem ganhando cada vez mais espaço entre pesquisadores que desenvolvem suas pesquisas no âmbito da Linguística, notadamente as de cunho sócio-histórico. Seu nascedouro se ancora na Linguística alemã, mais precisamente na Escola de Tübingen, transitando na seara da Pragmática (COSERIU, 1980b[5], 1982[6]; SCHLIEBEN-LANGE, 1983[7]; JUNGBLUTH, 1996[8]; KOCH, 1997[4], no prelo[9]). A origem alemã dos estudos em TD ocorreu na segunda metade do século XX, por volta de 1970 e 1980 no contexto de aparecimento da Linguística de Texto e da Pragmática. Aqui no Brasil, os estudos à luz das Tradições Discursivas começaram a ser difundidos por volta de 2000, a partir de reuniões entre pesquisadores do Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB) e de intercâmbios entre estudiosos brasileiros e alemães (GOMES, 2005[10]; SCHLIEBEN-LANGE 1993[11]; JUNGBLUTH, 2016[12], 2018a[13], 2018b[14]). Posteriormente em outras instâncias de pesquisa, o modelo das Tradições Discursivas veio se mostrando relevante para discutir questões referentes à historicidade do texto e da língua. Essa relevância foi pontuada por Mattos e Silva (2008, p. 146[15]), ao comentar que “sem dúvida, a mais recente orientação nos estudos histórico-diacrônicos é a das tradições discursivas (TD)”.

As pesquisas sobre o tema proposto para este dossiê estão em crescente projeção e articulação dentro e fora do Brasil. Em âmbito nacional, vale mencionar o capítulo sobre editoriais (GOMES; ZAVAM, 2018[16]), publicado na obra de referência do Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB). Em âmbito internacional, está em fase de redação o artigo intitulado “Discourse traditions in synchrony” (GOMES; JUNGBLUTH, no prelo[17]), que será publicado na Alemanha. Na Argentina, as organizadoras também estabelecem interlocução com Guiomar Ciapuscio, que, ancorada no modelo das TD, vem investindo na análise diacrônica de fenômenos linguísticos da América Latina, a fim de melhor compreender as intrincadas relações entre expressão escrita e oral (CIAPUSCIO; JUNGBLUTH; KAISER 2005[18]; CIAPUSCIO; JUNGBLUTH; KAISER; LOPES, 2006;[19]). No México, o intercâmbio tem se revelado não menos fecundo com as interlocuções estabelecidas com Alfonso Shibya (2018[20]), que se dedica a investigar a mudança linguística no espanhol. A expansão do espaço e a consequente difusão do conceito pode ser constatada ainda por meio de grupos de pesquisa, eventos realizados, muitos outros trabalhos publicados, razão pela qual se justifica a organização deste dossiê temático que agrega e socializa pesquisas nacionais e internacionais em torno do tema, que, apesar de contribuições já dadas ao conhecimento sobre a história da língua e dos textos/gêneros, ainda mantém seu caráter inovador.

O objetivo deste dossiê é, pois, fomentar discussões teóricas, metodológicas e analíticas que resultem de estudos desenvolvidos com base no modelo das Tradições Discursivas. Para tanto, três princípios da teoria de Coseriu (1980b[5]) são norteadores: a) o princípio da historicidade, no qual os seres humanos são seres históricos por definição e a língua é a base da existência humana; b) o princípio do falar, que postula que a linguística deve considerar em primeiro lugar a atividade criativa dos falantes; c) o princípio da tradicionalidade discursiva, que responde pela relevância da tradicionalidade nas questões linguísticas (KABATEK, 2005[21], 2015[2]). Quanto ao terceiro princípio, importa lembrar que a historicidade do texto envolve a sócio-história da língua, por meio da integração de algumas dimensões de análise: tradicionalidade dos gêneros; tradicionalidade composicional; tradicionalidade tipológica; tradicionalidade estilística; tradicionalidade linguística (ANDRADE; GOMES, 2018[22]).

Esta obra reúne, portanto, pesquisas que, sob um ou outro aspecto, tomam essa historicidade do texto de que fala Coseriu como pressuposto fundamental que regula as lentes investigativas e subjaz às análises empreendidas. Assim, os artigos se conectam, por um lado, por reconhecerem a proficuidade do conceito de tradição discursiva, por outro por ancorarem a discussão e a análise nesse paradigma, ainda que em corpora diferenciados.

No ensaio intitulado La compleja relación entre tradiciones discursivas y estilo, Alfonso Gallegos Shibya analisa a relação entre tradições discursivas e estilo, propondo uma classificação das tradições discursivas segundo os aspectos tipológicos que condicionam sua transmissão interlinguística e uma distinção entre estilo individual e supraindividual. O pesquisador defende que o estilo supraindividual, ao revelar um uso coletivo, isto é sociocultural, consiste em um tipo de tradição discursiva. Ainda que não sejam equivalentes, os conceitos se interseccionam parcialmente.

Eliana Correia Brandão Gonçalves, no artigo Tradição Discursiva, Filologia e Corpus Histórico-Diacrônico: análise de Requerimentos do século XVIII, analisa as práticas históricas e socioculturais da escrita, com base tanto no modelo de Tradição Discursiva quanto na prática filológico-linguística. Para isso, analisa as edições de Requerimentos sobre a Bahia, produzidos no século XVIII, no âmbito da Administração Pública do antigo Conselho Ultramarino. Para produzir um texto jurídico-administrativo na América Portuguesa, era necessário conhecer os modos de dizer que regem a organização desse tipo de TD escrita, marcada por fórmulas obrigatórias e unidades lexicais que se articulam no texto. Portanto, a autora defende que, partindo do modelo de Tradições Discursivas, podem ser notadas certas regularidades e variações linguísticas nesse gênero textual.

Ainda com base em textos manuscritos, Elizabhett Christina Cavalcante da Costa e Cláudia Roberta Tavares Silva, no artigo Os modos tradicionais de dizer do século XIX e XX: uma análise das cartas pessoais de pernambucanos, objetivam verificar marcas composicionais em cartas de amigo e cartas de família. As pesquisadoras analisam como as formas recorrentes de dizer contribuem para uma maior ou menor implicação emocional das expressões comunicativas e fazem perceber quais marcas pragmático-discursivas são evocadas no gênero carta pessoal.

Ao analisarem cartas de amor portuguesas, Natanael Duarte de Azevedo e José Temístocles Ferreira Júnior, no artigo intitulado Historicidade das cartas de amor, buscam compreender a composição do gênero carta pessoal de amor a partir de sua circulação no Brasil durante o grande século XIX. A análise aponta para a identificação de marcas composicionais da carta de amor que se mantêm ao longo do recorte temporal, mesmo que haja mudanças significativas de ordens tipográficas, temáticas e de apropriação do sentido do amor.

Recorrendo também ao gênero carta pessoal,  particularmente em exemplares oitocentistas e novecentistas, Luiz Fernando de Carvalho, em seu artigo O imperativo em variação na escrita mineira: o papel do sujeito e das seções das cartas, volta seu olhar investigativo para as formas variáveis do imperativo de 2ª pessoa do singular (tu, você, tu/você, formas nominais), empregadas por escritores cultos, buscando estabelecer a relação entre referência do sujeito de 2a pessoa e movimentos retóricos do gênero (saudação inicial, captação de benevolência, núcleo, saudação final e post scriptum) na expressão do imperativo com formas indicativas e subjuntivas. Baseado em um percurso metodológico rigoroso, o autor comprova essa estreita imbricação, sustentada na força da tradição gramatical sobre os produtores das cartas aliada à presença de tradições discursivas próprias da carta pessoal.

Ainda no domínio dos textos manuscritos, Ticiane Rodrigues, no artigo Uma análise do gênero denúncia à luz do paradigma das Tradições Discursivas, analisa as categorias linguísticas e discursivas que apontam traços de permanência e/ou mudança na peça introdutória dos processos-crimes registrados no estado do Ceará nos séculos XX e XXI, a fim de observar a repetição de um texto ou de formas textuais, “expressões formulaicas”, que possam ser tomadas como elementos da respectiva TD para descrever traços significativos de mudança e/ou permanência. Os resultados alcançados revelam que o gênero denúncia apresenta, em sua composição, o que se caracteriza como reelaboração interna, mudança ocorrida no interior dessa própria tradição discursiva.

Já no âmbito dos textos impressos, no artigo Tradições discursivas no gênero editorial praticado no Brasil e na Argentina: a expressão do campo dêitico nos séculos XX e XXI, Lucineudo Machado Irineu analisa o uso das expressões dêiticas pessoais, temporais, sociais e modais que evidenciam, diacronicamente, a construção das imagens de si reveladas por editorialistas de dois periódicos, Jornal do Brasil e o Clarín, publicados no período compreendido entre os anos de 1945 a 2014. Para empreender sua análise, o autor traz mais luz ao conceito de tradição discursiva ao aproximá-lo de estudos de Análise do Discurso. Fundamentado em uma análise criteriosa alicerçada em um exemplário contundente, o autor constata o predomínio de dêiticos na primeira pessoa (plural inclusivo) no periódico brasileiro, e o predomínio de dêiticos temporais de natureza adverbial (expressão de tempo) no periódico argentino, destacando, assim, mudanças e permanências no uso desses elementos linguístico-discursivos no recorte temporal estabelecido.

Jorge Luis Queiroz Carvalho, no artigo Diacronic genre analysis: patterns of rhetorical organization in academic book reviews, analisa vestígios de mudança e traços de permanência em resenhas acadêmicas produzidas entre os séculos XX e XXI. Para tanto, tem por objetivo analisar os movimentos retórico-composicionais mais frequentes em resenhas acadêmicas publicadas entre 1953 e 2015. Os resultados indicam quatro movimentos retóricos presentes nas resenhas: introdução à obra, sumarização do conteúdo, avaliação da obra e avaliação final. Esses movimentos se dividem em 16 passos retóricos, cuja frequência e modos de realização apresentaram traços de variação em cada uma das fases geracionais.

Encerrando a obra, Guiomar Elena Ciapuscio, no artigo Text Genres in Cardiac Emergency: from activity to typology, objetiva, em primeiro lugar, apresentar brevemente alguns fundamentos antecedentes da Linguística e revisar as principais perspectivas e tradições de pesquisa. Em segundo lugar, introduz conceitos elaborados dentro da Linguística de Texto alemã, que oferecem uma visão global e explicativa sobre os gêneros textuais. Em terceiro lugar, o artigo ilustra os aspectos teóricos com base em um corpus de entrevistas realizadas em um hospital público argentino, durante o tratamento de emergências cardíacas. O artigo mostra-se como uma relevante contribuição científica, sobretudo por apresentar aos leitores, além dos estudos clássicos na área, as discussões mais recentes sobre a Linguística Textual.

As contribuições mostram que o conceito de tradição discursiva está bem arraigado no Brasil. Durante décadas o conceito de TD não só foi usado como modelo norteador para trabalhos empíricos no País, mas também alcançou autonomia própria em questões teóricas enriquecendo os debates além das fronteiras nacionais entre os pesquisadores da Europa e da América. A coincidência temporal deste dossiê com a fase preparatória na Alemanha da publicação do Manual de tradições discursivas no romance (WINTER-FROEMEL; TOLEDO y HUERTA 2022[23]) pode ser interpretada como índice da influência recíproca da colaboração acadêmica e parceria de longa data. Nós, as três organizadoras, desejamos a todes uma leitura, não só produtiva, mas também prazerosa, que lhes permita descortinar um pouco mais a riqueza da linguagem humana, de forma a abrir novas perspectivas, permitindo, assim, uma melhor compreensão da interdependência histórica e sociocultural entre a língua e os textos.


https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1779


GOMES, V. S. .; ZAVAM, A. S.; JUNGBLUTH, K. . Tradição discursiva e historicidade da língua e do texto. Revista da ABRALIN[S. l.], v. 19, n. 3, p. 562–567, 2020. DOI: 10.25189/rabralin.v19i3.1779. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1779. Acesso em: 26 ago. 2023.

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