MEMÓRIA, HERANÇA, PATRIMÓNIO E PAISAGEM
GLOBALIZAÇÃO E LOCALISMOS
A preservação da herança comum na esfera do cultural ou do natural, por via da conservação das sequências de passado, é anacronicamente definida, porque conceptualizada no presente. É, portanto, o valor simbólico no presente que confere a perenidade ou o efémero. O tempo presente, é, neste aspecto, mais pesado que o tempo passado, mas também é o “actual presente” que mais descola dos passados porque vive um maior sentimento de perda e até de nostalgia.
rapidez com que no pós-guerra se aprofundou a mundialização da economia sobre os caboucos quinhentistas da economia-mundo, gerando a globalização dos mercados,a voracidade de circulação de mercadorias, de capitais e informação ou, a possibilidade de as decisões serem tomadas quase em tempo real, teve também como consequência a padronização da cultura. A homogeneização tem sido sinónimo da dominância do modelo Norte-Americano, dos valores do liberalismo e tem assentado na pontualização dos focos difusores, através do controle de poderosos meios de comunicação de massa, por uma cada vez mais omnipresente indústria cultural. É a unificadora “cultura global” Walt Disney, Spielberguiana ou MacDonald's, quase sempre sobreponível às diferenças, que modela em quase todo o mundo o consumo cultural, que rendibiliza o tempo livre, que promove o direito ao consumoe o eternamente jovem em modelos de existência a perseguir.
O aumento do poder de compra que se verificou no período dos “trinta gloriosos”, possível pelo crescimento dos salários reais, pela democratização e pelo prolongamento da escolaridade, possibilitou o consubstanciar do património numa das componentes essenciais das novas formas de consumo que se seguiram aos ciclos de equipamento do lar (mobiliário e electrodomésticos) e de aquisição de automóvel. A partir dos anos 80, com o abrandamento do crescimento económico, a cultura passou a ser também considerada como parte integrante das estratégias de desenvolvimento regional a longo prazo. O aprofundamento da construção europeia na medida em que flexibilizou os movimentos transfronteiriços reduzindo o significado das fronteiras nacionais, passou a conferir novo destaque e uma enorme importância às afirmações culturais regionais, na medida em que asseguram escalas diferenciadas de coesão e identificação de novos conteúdos territoriais dos estados europeus.
Emprego no sector cultural disparou e as despesas familiares são actualmente neste campo significativas. As culturas e o património são também, portanto, bens de consumo, sendo este último uma componente essencial da oferta turística, actividade cujo peso na economia é cada vez maior.
Se, na Europa, as políticas de conservação têm larga tradição, emanando essencialmente do Estado, quer pelo peso relativo na despesa pública ou pela necessidade de concertação de estratégias e objectivos económicos, financeiros, pedagógicos ou de invesligação científica, a promoção das culturas locais — que eram sobretudo raiz e memória inerte — só recentemente se têm associado às questões de desenvolvimento local na medida em que as suas referências são mais restritas e circunscritas territorialmente, o que não significa que a sua leitura e difusão não seja igualmente sobretudo de promoção institucional. Consubstanciam-se em identidades locais de fronteiras às vezes fluidas, outras vezes sobrepostas, em sentimentos de partilha e de pertença visíveis na esfera do simbólico, no sedimentar dos laços que referenciam uma comunidade a um espaço determinado, a um “lugar”. As culturas locais definem-se ainda relacionalmente pelo assumir da diferença de forma a recriar e para recriar um “sentido de lugar”. Assegurar a sua perenidade é também encurtar os laços comuns com o passado mais ou menos longínquo, estabelecer nexos de continuidade com ele, rever-se nele, tornar explícita a existência de uma memória colectiva (que tanto pode transparecer no artesanato ou na recuperação da arquitectura vernácula), evitando que o particular e específico se volatilize face aos valores estandardizados de nenhum e de todos os lugares.
Esta identidade não é, em si, imanente, mas, pelo contrário, vai também sendo construída pela acção do presente. A sua materialização, na passagem de ideia a memória e portanto, a património, pressupõe uma retórica moralizadora e de auto-estima, a defesa voluntarista de enraizamentos profundos, além de um quadro ideológico de referência dependente das opções políticas tomadas a diferentes níveis de decisão, desde os governos às mais pequenas comunidades. Mas, se a globalização tende a reduzir as culturas locais ao exótico, as estratégias da afirmação das culturas locais tendem igualmente a exteriorizar--se. Na procura de visibilidade tendem a mediatizar os objectos do património, a percorrer lógicas de concorrência entre si, a promover exposições temáticas, concursos vitícolas, gastronómicos, etc. de forma a manter ou gerar capacidade atractiva.
O património é agora também entendido pela maioria dos territórios excêntricos aos principais pólos urbanos, quer se trate dos espaços serranos ou de outras áreas em perda demográfica e económica, como um dos eixos fundamentais na promoção de desenvolvimento e de melhoria da qualidade de vida das populações locais, possível através da diversificação das fontes de rendimento. A revitalização das áreas centrais dos pequenos aglomerados urbanos, pela preservação do edificado, pela animação cultural e pela diversificação das formas de lazer fazem não só parte do imaginário dos poderes locais, como constiuem componente de acção. Mas esta opção não é, nem tem sido, isenta de riscos, movendo-se entre o potenciar da rendibilização, sobretudo quando o sucesso tem sido maior, e as “resistências” à formulação da própria ideia de património, como é corrente em muitos dos pequenos aglomerados rurais.
No primeiro caso porque, ao procurar reduzir-se modos de vida plurifacetados a esteriótipos que se ajustem à vulgata do tradicional e do típico, à ideia que os outros — os consumidores — transportam, se tem verificado, às vezes, uma excessiva tendência para a formatação museológica, demasiado materializada e até redutora do essencial. A mostra indiscriminada de artefactos, por se terem constituído em passado não opera por si só a passagem do imaterial para o domínio do visível (Guntaume, 1990). Por outro lado, esta tendência para produzir cidade apenas pelo restauro das condições pré-existentes, seguindo uma perspectiva demasiado paralisante do tempo, dificulta também o confronto com novas linguagens arquitectónicas apazes de sincronizar os tecidos urbanos e operar a parção ou complementaridade entre passado e presente.
No. segundo
caso, por regra onde os traços de modernidade estão menos presentes, a
conservação do que é passível ser entendido por património — até mesmo o facto
de se tratar de património —, é de difícil apreensão por parte das populações.
A valoração do que é tradicional é sentida como definição exterior, sendo na
comunidade local a concepção de património associada a tudo que é retrógrado, lembrando
os estados de carência múltipla muitas vezes de vivência tão próxima, a precariedade
material da - existência, que só a recente desruralização, como o adventoda modernidade
aliviou. O desejo de aceder aos padrões e estilos de vida que associam à ideia
de progresso “é, às vezes, bem mais forte do que a vontade de preservar ' Os
precipitados materiais da cultura ou culturas locais, “somente julgados
relevantes porque esteticamente “destacáveis pelos outros, quer se trate dos
poderes exteriores ou de um ou outro exemplo de fruição do campo como opção de
vida pelos neo-rurais em ruptira com a “tecnocracia amórfica” da grande cidade.
MARQUES, Helder; MARTINS, Luís Paulo Saldanha. Memória, herança, património e paisagem. Cadernos de geografia, 17, 1998, p. 123-129, 1998.
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